Trabalho é trabalho, a obra é para sempre.

Tanta coisa que não se viu. A estrada de ferro Bahia-Minas, a
Amazónia, a Patagónia, os Andes, o Pantanal, pombas giras e o
olodum. João Gilberto escondido, e o Cristo Redentor. Manuel
Bandeira ou um kaiowá. Tanta coisa que não se viu e isso não se
faz. Crescemos nas ruas mais entupidas que alguma vez tínhamos
pisado e isso era bom. Corremos na Paulista, bebemos demais na
Consolação e ouvimos histórias de terror e glória todos os dias e
ponderávamos, quase sempre mal, por onde começar a obra.
Avistámos araras e arraiais, noites inteiras de olhos brilhantes, a
escutar. E as teses, quase sempre nefastas, atiravam-nos ao chão
em gargalhada. Uma outra mão se abria para oferecer o terreno
que a obra aguardava. Entrava-se em casa na Vila Mariana, e o
nada era o suficiente, meia dúzia de tupperwares e um colchão.
Um cafezinho e um misto quente, um sopro no cigarro e dar ao pé.
Subir à praça e entreter com o sotaque fazendo elegias ao drama.
Não sei porquê mas hoje dei por mim às voltas com a alegoria da
caverna e sacudi o pó aos ossos rachados, numa de arqueologia
tropical, onde fui encontrar um amigo num lugar remoto da
memória em que ele dizia que deveríamos arriscar mais na vida e
menos na obra - como se virar um hemisfério acabadinhos de
acordar para a vida fosse outra coisa. Agora, de forma diferente, e
com todas as vontades sob controlo e com um olhar mais
preparado, mais distante. Planar sobre todos os acontecimento de
forma a poder recuar quando necessário, com cautela no mundo
para que a obra possa existir. Preservar a obra, salvar a obra,
deixá-la tomar conta de nós. Então escrever uma despedida, que é
o que cada trabalho que nos sai das mãos deve ser. Uma longa e
demorada forma de aniquilação que se dissipa à medida que se
concretiza. Aos factos devemos a contemplação porque nos
trouxeram até aqui, mas aquilo que realmente ilumina é a luta que
se trava para transformar a escuridão que precede qualquer forma
de linguagem em substância. É nessa antecâmara que se combate
mais algum tempo até que se forme uma nova convulsão que
obriga a pensar e, é nessa obrigação, que nos concentramos.
Temos então de dominar a brutalidade que quer invadir continentes
e flanar, isto é, caminhar sem propósito. Com algum ritmo, de
certa forma, com rapidez. Percorrer avenidas com desembaraço - a
propósito da observação - cabisbaixo, talvez, mas com a certeza
de que mesmo coxo e roto se pode arquitetar a obra. Basta papel,
caneta e um plano. Ouvir atentamente, não esclarecer propósitos
e, no melhor dos casos, deixar na dúvida. O maior espanto? A
artimanha da sacanagem bem montada. Conhecemos artilheiros
dos bons, camafeus do mais fino calibre que tinham feito escola na
viragem do século e aprendido a lição, por ora, já se sabe, a curva
apertou e com qualquer areia se derrapa e que se lixe a obra.
Vamos lá ver, é a política, mais o serviço bem feito, mais a
conjuntura, menos a obra. Não há história que não se acabe, é
bem verdade, e podemos verter o cesto da fruta e ainda a alma
toda como que por tripas e corações de dias e noites infinitas em
que se perde toda a razão que, ainda assim, a história escorraça
as nossas ilustres causas para a rua, ou para a sarjeta ou para o
diabo que nos carregue. Portanto, dizer adeus é um processo
demorado, passam-se anos até que se fechem as contas com
certos eventos, certos dias e semanas e certos etc’s. Salgadelas
monumentais que ecoaram até aos tetravós. Noites infernais de
pós-dramático apenas toleráveis com Boazinha e algum espetinho.
Tanto por ver. O Rio Prata e o deserto do Atacama, Gal Costa e o
Sertão, e nós na sala de espetáculos ou de alguém à espera da
revelação. Livros e livros e não lemos nada, nadinha. E agora uma
despedida? E ninguém morre? E ninguém grita? E silêncio que lá
vem a obra? Nem uma abaladiça, ou um foguetório? Já sei,
exagero. E agora? Um homem e uma mulher diante de um balde
de sal, pouca luz, talvez. Duas cadeiras e duas mesas.
Conversam.
Ele diria qualquer coisa como:


Ricardo M.